A gente se acostuma. Mas não devia.
"... a gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está
na hora. A tomar café correndo porque está atrasado. A ler o Jornal no
ônibus porque não pode perder. A comer sanduíches porque não dá para
almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus
porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E
aceitando a guerra aceita os mortos e que haja números para os mortos. E
aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E
não aceitando as negociações de paz aceita ler todo dia, de guerra, dos
números, da longa duração.
A
gente se acostuma a engolir publicidade. A ser instigado, conduzido,
desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos. A gente se
acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. E a lutar por
ganhar o dinheiro com que paga. E a ganhar menos do que precisa. E a
fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber
que cada vez pagará mais.
A gente se acostuma à poluição. Se
acostuma a não ouvir passarinhos, a não ter galos na madrugada, a não
ter sequer uma planta. A gente se acostuma a coisas demais, para não
sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor
aqui, um ressentimento ali. Se o cinema está cheio, a gente senta na
primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a
gente molha só o pé e sua o resto do corpo..
Se o trabalho
está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de
semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica
satisfeito porque tem sempre sono atrasado. A gente se acostuma para
evitar feridas, sangramentos. A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que de tanto acostumar, se perde de si
mesma."
Marina Colasanti
A gente se acostuma. Mas não devia.
"... a gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está
na hora. A tomar café correndo porque está atrasado. A ler o Jornal no
ônibus porque não pode perder. A comer sanduíches porque não dá para
almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus
porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E não aceitando as negociações de paz aceita ler todo dia, de guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E não aceitando as negociações de paz aceita ler todo dia, de guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos. A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. E a lutar por ganhar o dinheiro com que paga. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais.
A gente se acostuma à poluição. Se acostuma a não ouvir passarinhos, a não ter galos na madrugada, a não ter sequer uma planta. A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só o pé e sua o resto do corpo..
Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado. A gente se acostuma para evitar feridas, sangramentos. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que de tanto acostumar, se perde de si mesma."
Marina Colasanti
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